Os merceeiros assistem, impotentes, aos cidadãos que, vaidosos, se pavoneiam rumo ao Modelo para se abastecerem de géneros para os próximos dias. Lá vão eles, quase lampeiros, atravessando a terra em que, graças ao pavimento preenchido de paralelipípedos de basalto, o ruído dos pneus no solo é amplificado, fazendo com que os carros - mesmo rolando em ponto morto - provoquem um gargarejo um pouco grave, rápido mas calmo, que atrai os olhares dos transeuntes que só vão à farmácia ou a um dos cafés que tenha jornais em cima das mesas. Alguns destes condutores, talvez os mais simpáticos, apitam rapidamente à passagem em frente à venda; contudo, e apesar do pequeno acenar que são obrigados a dedicar-lhes, os merceeiros sentem crescer dentro do peito um leve sentimento de despeito. Lá vão eles, ao Modelo das luzes incandescentes e brilhantes, dos cartazes bonitos ou de gente quase bonita, e dos cartões de débito imediato.
A partir da segunda metade do meio do mês, porém, tudo muda. Aos senhores que, ainda a semana passada passavam suficientemente rápido para não parar, mas lentamente o bastante para serem vistos - naquele seguro sentimento de ego apaziguado que o deslocar em veículo próprio e a motor proporciona - é vê-los chegar, transeuntes como todos, abeirando-se da mercearia, como se nada fosse, ou como se fosse normal. E é-o, verdadeiramente falando; já estamos na segunda metade do meio do mês. Melosos, abordam os merceeiros e, num disfarçado rabo entre as pernas, inquerem sobre as novidades da terra, dos vizinhos e do movimento. Opinam infundamentadamente algo sobre a longínqua situação política e económica do país e apoderam-se de alguns dos víveres espalhados timidamente pelas prateleiras.
O merceeiro já não é apenas alvo de uma buzinadela, já é tratado por "vizinho" ou "amigo". O merceeiro não aceita cartão de débito, mas ainda bem. A relação é de interesse, do merceeiro queremos o que o Modelo não nos dá, mesmo que publicite que sim. Do merceeiro queremos crédito, queremos pôr na conta, queremos pagar fiado. Querem eles, os que há poucos dias apitavam levemente à passagem, mas que, vendo o emagrecer do ordenado que não estica, já não se sentem atraídos pelos cartazes luminosos. E chega-lhes o bigode farfalhudo do merceeiro e a pouca variedade de marcas e produtos, desde que o mesmo lhe proporcione os mesmos a pagar depois.
Para o mês há mais, mas ainda falta algum tempo.
t.
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